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Perda de memória e falta de concentração podem indicar quadro de “covid longa”

Mylena Fraiha - Campo Grande News em 21 de Julho de 2024

Neurologista explica que alguns paciente que tiveram covid-19 relatam perda de memórias recentes e dificultam atividades cotidianas

Perda de memória e atenção são alguns dos problemas mais frequentes relatados por pessoas que tiveram covid-19. É o que revela um estudo do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo), publicado pela revista BMC Psychology este ano.

De acordo com os pesquisadores, dentro de uma amostra de 302 pessoas, 11,7% dos que tiveram covid-19 leve relataram dificuldades cognitivas. O percentual passa para 39,2% entre as que tiveram covid-19 moderada e salta para 48,9% dos pacientes que tiveram covid-19 grave. Estudo pode ser acessado na íntegra por meio deste link

Quadros como esses, de perda de memória e falta de concentração, também são frequentes em alguns consultórios médicos. Quem explica isso é o médico neurologista Vinicius Hardoim, membro titular da Academia Brasileira de Neurologia e da Sociedade Brasileira de Neurofisiologia Clínica.

"Eu recebo um caso desses pelo menos uma vez por semana. Claro que, na época da pandemia, era muito mais frequente. A primeira coisa que faço quando alguém vem até mim e diz que tem um problema de memória é analisar o caso e conversar com o paciente. Muitas vezes, eles me dizem: 'Doutor, estou com um problema de memória, e tudo isso começou depois da covid-19'", explica o médico, que também atende na clínica Neuroclínica, em Campo Grande.

Segundo ele, os termos médicos mais utilizados e reconhecidos pela comunidade científica para definir sintomas prolongados da doença são "síndrome pós-covid-19" e "covid-19 longa". "Existe um esforço para homogeneizar a definição dos sintomas pós-covid. A OMS estabelece que a síndrome pós-covid ou covid longa surge três meses após a infecção, com sintomas que duram pelo menos dois meses e não podem ser explicados por um diagnóstico alternativo. São sintomas variados, como fadiga e falta de ar, mas também queixas de memória e outros problemas cognitivos".

Uma das principais diferenciações, segundo Hardoim, é que os quadros pós covid-19 afetam especialmente as memórias recentes e dificultam atividades cotidianas, como cozinhar, trabalhar e até mesmo praticar hobbies. 

O que realmente ocorre é uma dificuldade na execução das atividades do dia a dia. Você esquece o nome daquela pessoa que você sempre lembra, esquece algo no fogão, ou está tocando uma música no piano que você sempre tocou bem, e de repente comete um erro", explica o médico neurologista.

Para traçar um diagnóstico de síndrome pós-covid-19 preciso, o neurologista explica que é necessário analisar o quadro com cuidado, descartando outras possibilidades que possam ocasionar essa perda de memória, como má qualidade do sono, poucas horas dormidas e quadros psiquiátricos, como ansiedade e depressão.

"Quando encontramos alguma dessas condições, a primeira coisa a fazer é tratá-las, pois, até que se prove o contrário, os sintomas cognitivos podem ser causados por esses fatores. Chamamos isso de pseudodemência, ou demência falsa, porque não é uma demência verdadeira", explica o médico neurologista. 

Um dos casos apresentados pelo médico é do paciente identificado apenas como Carlos, de 50 anos, um empresário campo-grandense que contraiu o vírus em 2023. Ele teve uma forma moderada da doença e se recuperou em casa, com uso de oxigênio domiciliar.

Um ano depois, Carlos começou a ter dificuldade para realizar multitarefas e planejamento estratégico, que eram seus pontos fortes no trabalho. Após realizar testes cognitivos, a avaliação clínica mostrou que o paciente teve prejuízos nas funções executivas, na memória imediata e na atenção. Também apresentou alguns sinais de leve transtorno de ansiedade associado.

"Quase um ano após a recuperação da covid-19, ele tem esquecido reuniões importantes e prazos, além de se sentir, de forma constante, mentalmente fatigado, quase como se houvesse uma 'névoa' em seus pensamentos", aponta o documento cedido pelo neurologista, que apresenta o caso clínico. 

Como a pandemia afetou o cérebro?

Para o neurologista, o contexto pandêmico pode ter contribuído para os sintomas de perda de memória diretamente, devido a uma inflamação sustentada no sistema nervoso central. "Você tem uma infecção, e então seu corpo gera uma resposta das células de defesa. Essa resposta pode persistir por muito tempo e causar dano direto à região cerebral".

Isso também é reiterado pelo pesquisador do Instituto de Psicologia da USP e autor do artigo mencionado anteriormente, Antônio Serafim, que explicou como o vírus afeta essas funções cognitivas.

"Quando o vírus entra no sistema nervoso central, ele altera a parte química do cérebro. Ele mexe com proteínas, com áreas específicas, com substâncias. Ele altera a velocidade das sinapses e as ondas elétricas. Então, tudo isso vai ter impacto. Do ponto de vista psicológico, nós temos as funções psíquicas. Por exemplo, a atenção é uma função primária. A atividade mental depende da qualidade, da capacidade que uma pessoa tem de se concentrar", explica o pesquisador, em entrevista concedida ao Portal de Divulgação Científica do IPUSP (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo).

Em muitos casos, no entanto, Hardoim aponta que é comum que os sinais tenham relação com quadros anteriores de transtornos psicológicos, como ansiedade e depressão — comuns no contexto da pandemia, devido à mudança nas rotinas e ao estresse e insegurança vivenciados no período, como mortes e falta de vacina.

"O psicológico e o cognitivo andam juntos. Uma alteração psicológica como ansiedade e depressão frequentemente causa problemas cognitivos. E, como pode se imaginar, tivemos um aumento na incidência de quadros de ansiedade e depressão durante esse período", comenta o  médico.

Tratamento

Até o momento. não há tratamento com medicamentos para a perda de memória gerada pela covid-19. Entre as alternativas propostas pelos pesquisadores da USP estão as técnicas conhecidas como Neuroestimulação e Neurofeedback. Esses tratamentos não-invasivos procuram estimular os neurônios dos pacientes e são utilizados no tratamento de pessoas com TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade).

O Neurofeedback funciona com uma touca equipada com eletrodos colocada no paciente, ligada a um software. A partir daí, trabalha-se tanto a estimulação verbal, solicitando à pessoa realizar uma tarefa, quanto a estimulação visual, por meio de imagens. Já existe um projeto piloto com o uso desses tratamentos, que ainda está no início, mas já apresenta resultados promissores.

O neurologista explica que, em alguns casos, é necessário realizar uma reabilitação cognitiva, também conhecida como reabilitação neuropsicológica, que auxilia a exercitar determinadas funções para reduzir danos ou perdas. Ele menciona que, normalmente, são exercícios básicos, como jogos da memória e exercícios de raciocínio.

"Você vai, aos poucos, readaptando a pessoa para recuperar aquele tipo de memória rápida e o processamento ágil de resolução de problemas. Eventualmente, é possível encaixar essas habilidades na realidade cotidiana da pessoa", afirma o médico.

O neurologista também ressalta a importância de descartar outras alterações que têm tratamento específico e que podem causar sintomas cognitivos, como dormir mal e o abuso de substâncias. "Muitas vezes, as pessoas pensam em drogas, mas substâncias como café e álcool também podem afetar. Além disso, é importante considerar a ansiedade e a depressão. Identificamos e tratamos essas condições, e, na maioria das vezes, isso resolve os problemas. Nos casos em que não há resolução, partimos para a reabilitação cognitiva".