Coluna Coisas da Língua, com Rosangela Villa (*) em 12 de Dezembro de 2022
Distinta da escrita, a fala é livre, espontânea, e sofre todo tipo de efeito externo sobre seu processo de evolução: espacial, nível de escolarização do falante, etnia, gênero/sexo, faixa etária, grupo social a que pertence o indivíduo, e outros fatores sociais, a fala é vulnerável a tudo isso. O fator geracional, por exemplo, nos permite ouvir broto, gato, pão, enquanto variantes de nome atribuído à pessoa jovem e bonita do gênero masculino; assim como bacana, joia, legal, trilegal para algo muito bom.
Nesse contexto, as diferentes formas de se expressar numa língua, incluindo gírias, são caracterizadas como variação linguística. Contudo, a escrita de uma língua é uma convenção rigorosamente estabelecida, e inclui letras, números, sinais, códigos e símbolos. E nem sempre a escrita corresponde à linguagem oral.
Por exemplo, o som “que”, de Catar, em português pode ser representado pelas letras c em casa, q em quilômetro, k em karaokê, ketchup. Igualmente, o mesmo c de casa pode ter outro som, em cedo, cebola; o que prova que as regras da escrita são oriundas de deliberações políticas que engessam a linguagem.
Nessa esteira, quando nos deparamos com grafias diferentes para o nome do país que sedia a copa, vimos que as duas formas representam convenções de escrita em português e em árabe, como nos explica o artigo da Folhapress, publicado em 16/11/2022 pelo Correio do Estado, disponível em:
https://correiodoestado.com.br/esportes/qatar-ou-catar-leia-mais-sobre-a-grafia-do-pais-que-sedia-a-copa-do/407399/ Qatar ou Catar?
Leia mais sobre a grafia do país que sedia a copa do mundo. A forma de escrever o nome do país pode causar dúvidas.
"Começa neste domingo a Copa do Mundo do... Qatar? Catar? Gatar? À espera do início das partidas, torcedores e comentaristas estão tentando decidir como escrever e pronunciar o nome do país que sedia o evento, realizado de 20 de novembro a 18 de dezembro. Alguns, como é o caso desta Folha de S. Paulo, optam pela grafia Qatar com Q de “quibe”. Outros preferem Catar com C de “coalhada”. Há também quem diga a palavra em voz alta com G de “grão-de-bico”.
Mas quem é que está certo? De certa maneira, todos estão certos e errados. Essas grafias são tentativas de transliteração - ou seja, de adaptar letras de um alfabeto a um outro. Como há um bocado de letras e sons em árabe que não têm nenhum equivalente no português, esse processo é bem árduo. No caso do país que sedia a Copa, o grande problema está na primeira letra. O nome começa com um som que os linguistas chamam de “oclusiva uvular surda”. É como se fosse um Q de “queijo”, só que produzido mais atrás na garganta, com mais força. No alfabeto, esse som é representado pelo Q mesmo. Por isso a grafia mais técnica é essa: Qatar.
É inclusive o que recomenda o Manual de Redação da Folha de S. Paulo, na página 251. O Q tem essa vantagem de diferenciar um som mais gutural do C que a gente usa em português em palavras como “cabelo” e “carro”. Mas isso não quer dizer que Catar está errado. É apenas uma outra solução para um problema que é sempre insolúvel. Quem está interessado em aprender a pronúncia do nome em árabe vai precisar se esforçar um pouquinho mais.
O Q não é o único desafio. O T da segunda sílaba de Qatar é também mais enfático do que o do português. De novo, o som sai mais do fundo da garganta, com mais esforço. Já o R é mais fácil, porque parece o da palavra em português “cantar”. A sílaba tônica é a primeira. Ou seja: QAtar e não qaTAR. Só isso? Não. Até agora, este Orientalíssimo blog estava tratando da pronúncia da palavra Qatar no árabe padrão. Só que, no dialeto do próprio Qatar, o nome é dito de outro jeito. O Q vira G e o A pende ao I. Ou seja, fica parecido com Gatar ou Guitar. É complicado mesmo."
Coisas da língua! Até a próxima.
(*) Rosangela Villa da Silva, Profa. Titular da UFMS, Mestre e Dra. em Linguística pela UNESP, com Pós-Doutorado em Sociolinguística pela Universidade de Coimbra/Portugal.