Por Paulo Correa(*) e Iran Coelho das Neves(**) em 24 de Agosto de 2020
O trágico balanço das queimadas devastadoras, que até o começo da semana haviam varrido estimados dois milhões de hectares do Pantanal, talvez nunca chegue a ser de fato fechado.
Até porque, se é possível mensurar prejuízos econômicos e financeiros decorrentes da destruição de pastagens, lavouras de subsistência e de bens, como cercas e currais, a dizimação da fauna calcinada pelas labaredas representa um prejuízo incalculável para a Natureza, cuja regeneração pode demandar décadas.
Porém, não há dúvida de que o inventário da tragédia que transforma em cinzas boa parte do rico e frágil bioma pantaneiro impõe sobre a nossa geração, especialmente sobre todos nós sul-mato-grossenses e mato-grossenses, um irrefutável ônus. Ainda que não como culpados diretos pelo desastre ambiental, mas como fiéis depositários de um dos mais ricos e delicados patrimônios naturais da Terra, que nos compete legar às gerações futuras tal e qual o recebemos.
É com a perspectiva dessa responsabilidade ética geracional que devemos encarar a tragédia atual como situação-limite, uma dramática e contundente advertência de que devemos fazer mais, e já, para evitar que a recorrência de desastres como este fique apenas na dependência de elementos climáticos ou de eventuais descontroles de queimadas para renovação de pastagens, prática centenária da cultura pantaneira.
Sabemos que, embora relativamente imponderáveis e, muitas vezes, geradores de repercussões incontroláveis, fatores naturais, como estiagem prolongada ou secas cíclicas, são cada vez mais previsíveis, o que seria um componente vigoroso para a redução da escala e dos danos de calamidades como a que temos agora, caso as advertências da ciência e da pesquisa fossem ouvidas com mais atenção por quem deveria fazê-lo.
Quando o desastre se instala em incontáveis focos e os incêndios se alastram em muitas frentes, mesmo os heroicos esforços de bombeiros, militares, brigadistas e pantaneiros calejados são insuficientes para conter a fúria do fogo. E todo o conhecimento decisivo para a prevenção é de pouca utilidade para enfrentar as labaredas.
Para buscar reduzir a um mínimo tolerável os riscos de que o atual desastre se repita mais à frente, estamos propondo aqui uma iniciativa institucional que, articulada entre Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, possibilite criar mecanismos permanentes e eficazes de cooperação e intercâmbio entre os dois estados, tendo como campo de ação o Pantanal, patrimônio natural que temos o privilégio de dividir.
Aliás, ‘dividir’ talvez não seja o termo mais apropriado, pois o Pantanal não se sujeita a artifícios de limites territoriais, sendo único e indivisível na majestosa delicadeza de seu bioma.
Por isso mesmo, defendemos um arranjo institucional que, sem qualquer prejuízo para a autonomia de cada estado sobre a sua porção pantaneira, possa somar recursos técnicos e orçamentários, e aglutinar competências, com foco exclusivo na prevenção de incêndios. E no seu combate, quando necessário como agora.
Pensamos que, em uma etapa preliminar, os Legislativos de nossos estados, com o assessoramento técnico e consultivo dos respectivos Tribunais de Contas, podem avançar na discussão desse pacto. Em um segundo momento poderemos discutir sua modelagem jurídica, apresentando-a aos Executivos das duas unidades federadas e aos demais atores indispensáveis numa iniciativa dessa importância.
Se o bioma Pantanal, como observamos, não se deixa repartir por uma linha divisória imaginária, temos de pensar soluções comuns para problemas e desafios igualmente comuns à toda a Bacia Pantaneira. E nenhum desses desafios é mais urgente do que a prevenção contínua de incêndios devastadores como o que vivemos hoje.
Não podemos continuar nos irmanando apenas diante de emergências catastróficas.
Tanto quanto o Pantanal, o grande poeta Manoel de Barros é patrimônio inestimável de nossos dois estados. Muito a propósito, vale citar aqui a abertura de seu poema Mundo Renovado: “No Pantanal ninguém pode passar régua. Sobremuito quando chove. A régua é existidura de limite. E o Pantanal não tem limites.”
O aparente paradoxo de evocar a celebração da chuva em artigo que trata de queimadas descomunais se anula quando constatamos que, lamentavelmente, também o fogo desconhece limites quando espalha devastação sobre o Pantanal.
Diante do que, a nossa responsabilidade pública nos impõe romper limitações burocráticas para juntos, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, construirmos uma estrutura institucional permanente e eficaz para prevenir catástrofes ambientais e econômicas como a que ora assola o nosso Pantanal.
(*) Paulo Correa é Presidente da Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso do Sul.
(**) Iran Coelho das Neves é Presidente do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul.