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Leia: O mundo intenso e apaixonante de Corumbá

Nelson Urt (*) em 21 de Setembro de 2015

Era verão de 1971 e resolvi trocar o último ano do ensino médio vespertino do Colégio Estadual Maria Leite pelo noturno recém aberto do Colégio Dom Bosco. Matriculei-me, mas nunca apareci. Um dia antes de começar as aulas arrumei a bagagem e parti para uma viagem. Destino: São Paulo. Por algum tempo, meu nome permaneceu na lista de chamada, como uma amarga recordação para aquela menina que passou a ser a minha ex-namorada. Ela seria minha parceira de sala de aula. Mas nunca foi. Percorremos caminhos opostos.

Deixei para trás o primeiro amor, os amigos, a vida mansa e gostosa de Corumbá, as noites quentes em que jogava conversa fora sentado na mureta do La Barranca, ouvindo The Mamas and Papas, e parti rumo ao desconhecido, como alguém que vai para a guerra. Por sorte, nos meus caminhos em São Paulo, encontrei novos amores, amigos e mestres, que me ensinaram a escrever e ver a vida com gratidão, como uma dádiva divina, um presente a cada dia.

Hoje sou grato a Corumbá dos meus primeiros dias e a São Paulo de 30 anos de lutas e lições. E ao voltar a Corumbá que um dia fez parte dos meus sonhos, volto a sentir o calor, como raio de saudade, dentro do meu coração – repetindo a poesia da marcha de Luiz Feitosa Rodrigues, que mais uma vez vai ser tocada para celebrar o aniversário da cidade.

Nasci em Ladário, na avenida 14 de Março, há 61 anos. Ou seja, tenho exatamente a mesma idade da cidade de Ladário, que em março de 1954 se emancipou como município, após longos anos como distrito. Em Ladário, cresci brincando ao lado de Helô Urt e outras primas e primos nas ruas de terra, estudei no Colégio São Miguel com minha tia e professora Lila, depois tomei as primeiras lições com mestres como Hélio Benzi e Rachid Bardauil no Grupo Escolar de Ladário. Quando terminei o ginásio, era hora de enfrentar o primeiro desafio: o Colégio Estadual Maria Leite em Corumbá.

A timidez era tanta que as pernas tremiam ao entrar naquele admirável mundo novo. Era como se um menino do interior de repente desembarcasse na cidade grande. Por sorte, conheci logo de cara alguém que me estendeu a mão, ou melhor, um par de baquetas. Seu nome: Augusto Alexandrino dos Santos, o Malah. “E você, o que toca, garoto?” – perguntou-me. “Por enquanto, nada”, respondi, sem jeito. “Então pega esse par de baquetas e vai aprender a tocar surdo”, decidiu, abrindo a porta para o menino alto e magro entrar para o primeiro time da fanfarra do Maria Leite, que naquele tempo ainda ocupava o formidável prédio em forma de livro aberto, obra do arquiteto Oscar Niemeyer.

E me esforcei para não decepcionar e merecer a amizade de Malah, que com seu humor apimentado e crítico se tornaria um dos maiores chargistas da cidade. Ele me ajudou a conhecer uma das minhas primeiras lições: a fanfarra faz amigos e nos tira da solidão. Naqueles anos 70, estudar no Maria Leite era motivo de orgulho para qualquer aluno. Foi um privilégio ter aulas de História com o professor Clio Proença, dono da célebre crônica “Janela Aberta para a Cidade”.  Outra sensação incrível foi defender o time de basquete do colégio e ganhar uma final contra a até ali imbatível equipe dos Salesianos.

Não foi nada fácil trocar esse porto seguro de amizades e emoções por caminhos desconhecidos e improváveis. Comprovei, no entanto, que Corumbá é um mundo inesquecível, intenso, apaixonante. Mesmo depois de 30 anos, de me casar e formar uma família paulistana, de me apegar aos prazeres e saberes da Paulicéia Desvairada, descrita na poesia de Mário de Andrade, sabia que por trás do céu cinzento da avenida Paulista escondia-se o pôr-do-sol mais deslumbrante que eu havia contemplado, à beira do rio Paraguai. E sabia que um dia faria o caminho de volta para casa. Porque todo ser humano precisa ter um lugar para voltar.

Hoje, tenho amigos por todos os cantos do País, alguns lá fora. Guardo lembranças de quase todas as capitais brasileiras, de belas cidades e praias  do litoral de São Paulo, mas a todos que conheci recomendo não morrer sem antes conhecer esse paraíso no horizonte do oeste do Brasil: Corumbá.

Quando Shekespeare coloca o dilema “ser ou não ser, eis a questão” para a reflexão da humanidade, aqui podemos perfeitamente encontrar a resposta. Aqui é o lugar do ser, de se emocionar, de cantar, dançar, amar, namorar, procriar, se livrar da solidão, de se integrar a povos latinos como o nosso, de comer bem, de tomar um chope gelado ou um tereré, de chupar bocaiúva e sentir a pulsação do planeta. De contar as estrelas.

Poucos indígenas que habitavam essas terras sobraram para contar suas histórias, foram dizimados durante a colonização, mas os poucos descendentes guatós que restam, mesmo assim, tratam com gentileza os visitantes europeus. Contentam-se em ocupar terras na Ilha Ínsua, mas sabem que seus ancestrais possuíam muito mais. Fico feliz quando converso com dona Dalva, o cacique Severo e outros guatós que, vindos da aldeia Uberaba, ancoram o barco no porto de Corumbá.

Bairros negros como o Sarobá ainda escondem verdades sobre a escravidão em Corumbá, mas aos poucos vão saindo da escuridão e ganhando as páginas dos livros, graças à releitura da poesia de Lobivar Matos e ao poeta da resistência, Benedito C.G.Lima.

De volta a Corumbá, reencontrei Malah, outros amigos e familiares que aqui deixei. E a porta deste Diário Corumbaense me foi aberta pela jornalista Rosana Nunes. E aos que me perguntam por que voltei, se as melhores oportunidades muitos vão buscar lá fora, respondo com uma breve frase: na verdade, eu nunca saí, pois guardava dentro do coração um pedaço de tudo que vi, senti e vivi em Corumbá.

(*) Nelson Urt é jornalista.