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Veredas que se cruzam em algum espaço afetivo - um desenredo

José Alonso Tôrres Freire* em 19 de Setembro de 2025

Essa é uma narrativa que envolve três homens de lugares bem diferentes cujos percursos hão de se cruzar em torno de uma obra genial: Guimarães Rosa, Hans Curt Meyer-Clason e Mário Calábria. Um aviso ao leitor eventual: essa é uma daquelas tramas em que o livro e a leitura são centrais para os desdobramentos! Os acasos (serão mesmo acasos?) e as encruzilhadas da vida assumem aspectos surpreendentes, transformando pelo menos a vida de um desses personagens e entrelaçando os percursos desses homens que tinham quase tudo para não se conhecer. Isto posto: esta é uma história baseada em fatos e livros reais, porém nem tudo se pode garantir. Ou seja, se este texto não é totalmente ficção, também não é exatamente um documentário e preenchi algumas lacunas com a minha imaginação amorosa, estimulado por esse encontro em torno da literatura.

O enredo começa há muito tempo, mais precisamente em 1946, ano em que o escritor mineiro Guimarães Rosa (1908-1967) lança sua obra de estreia, Sagarana, uma coletânea de contos que se transformou quase que imediatamente em um clássico. Nessa obra, estão textos antológicos da literatura brasileira, como “Conversa de bois”, “O burrinho pedrês”, “A hora e a vez de Augusto Matraga”. É claro que não para por aí! Pois o mesmo escritor lançaria outros dois clássicos dez anos depois, 1956: Grande sertão: veredas e Corpo de baile (este último depois seria dividido em três volumes com títulos diferentes). Em todos esses livros, o leitor é surpreendido com uma linguagem inovadora, que recupera palavras antigas, tornando-as novas e novamente expressivas, inventa outras maneiras de dizer o que para nós soaria óbvio, com um narrar enviesado, muitas vezes com um mistério e uma atmosfera que são mais importantes que o próprio enredo. Tudo isso num espaço absolutamente físico e metafísico: o sertão das Gerais, situado (vagamente?) entre Goiás, Minas e Bahia.

No Grande sertão: veredas, Riobaldo, um homem que viveu toda a sua vida a vagar pelo sertão, conta sua história a um interlocutor que não se manifesta ao longo da narrativa, mas é de suma importância na fala carregada de poesia desse narrador. Querer entender o tanto que se passou em sua longa vida e os sucessos e reviravoltas que se deram é apenas o ponto de partida para o enredo. Há naquela voz um quê de melancolia pelo que fizera e pelo que não pudera fazer, pelas pessoas que cruzaram seu caminho, os enigmas que cada um carregava, os lugares e seus cambiantes significados, os papeis que ele assumira ao longo do tempo, sempre flutuantes, ora mestre ora discípulo, ora intuindo, ora ignorando completamente os sentidos do que se passava. Dentre os vários seres humanos que se sobressaem nessa voz, destaca-se um dos personagens mais interessantes da literatura brasileira: o também jagunço Diadorim, cujos olhos verdes embriagam e parecem refletir o verde das veredas e dos buritizais, deixando atônito um Riobaldo já completamente enleado...

A trajetória de vida de Guimarães Rosa é fulgurante! Nascido em Cordisburgo, uma pequena cidade no interior de Minas, estuda no famoso Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte. Ele mesmo conta, e aqui antecipo um pouco os desdobramentos desta história, que, quando era garoto, comprara uma gramática de língua alemã apenas para saborear os sons e os sentidos das palavras e expressões desse idioma. Na verdade, esse escritor incrível estudou várias línguas! Mais tarde se forma em medicina, profissão que exercerá até se tornar diplomata. O primeiro cargo de Guimarães Rosa já é em um lugar extremamente importante naquele momento, Hamburgo, na Alemanha, em período especialmente difícil daquele país, em plena ascensão do nazismo nos anos de 1930. Ali conhece Aracy de Carvalho, que se tornaria sua segunda esposa e a quem dedicou o Grande sertão: veredas.

Entrementes, também na Alemanha, em Munique, nasce um dos outros dois protagonistas dessa reunião, o que talvez tenha tido a vida mais aventurosa dos três: Hans Curt Meyer-Clason, em 1910. Se não temos muitas notícias de sua vida na Alemanha até 1936, podemos imaginar que teve uma sólida formação escolar, dominando pelo menos o inglês e o francês, habilidades que seriam muito valiosas em sua futura profissão. Mas, antes de tudo, aquele jovem viveu uma vida cheia de aventuras, mesmo antes de se transferir para o Brasil em 1936 para comercializar algodão, circulando também pela Argentina. Nesse período na América do Sul, mora primeiro em Recife, onde se deixa confundir com um inglês (certamente em virtude da virtual entrada do Brasil na guerra por pressão norte-americana), depois se muda para Porto Alegre, onde frequenta altas rodas de figuras alemãs, incluindo o cônsul, e namora com várias belas mulheres, numa vida bastante agitada, como o leitor pode imaginar a partir do romance O espião que aprendeu a ler (2017, de Raphael Guimaraens), que aborda esse período do personagem por aqui. Tudo ia mais ou menos bem para Curt, mas eis que, por pressão da comunidade alemã, ele fornece informações para as autoridades da Alemanha sobre pessoas importantes de Porto Alegre, que naquela época tinha uma população de origem germânica bastante considerável. Pelo que se sabe, ele não foi lá um espião muito engajado, estava bem mais interessado nas festas e mulheres do que no andamento do que estava acontecendo na Europa! Entretanto, o Brasil entra na guerra ao lado dos Aliados, com os alemães passando a ser vistos com desconfiança e Curt vai parar na prisão. Ali aparece um daqueles personagens secundários de romance que muitas vezes têm importância capital na trajetória do personagem principal: essa figura é Gerd Rhein, Geraldo para os brasileiros íntimos. Este intelectual irá apresentar, de uma maneira rara e elegante ao nosso personagem Curt Meyer-Clason o mundo da literatura e da sensibilidade artística, levando-o a escolher mais tarde a carreira de leitor de grandes editoras e, posteriormente, tradutor, quando volta para a Alemanha em 1954. Nosso personagem deixa, assim, de ser um comerciante, para entrar em um mundo novo para ele, o convívio diário com as literaturas latino-americanas, traduzindo vários escritores brasileiros e de outras nacionalidades. O próprio Curt afirma, segundo Raphael Guimarães no romance citado acima, que a prisão e, especialmente o encontro com Geraldo (Gerd), o desviou de uma vida sem graça de comerciante e o levou para onde ocuparia uma posição muito mais interessante: escritor e tradutor.

Bem antes desses eventos, nasce em Corumbá, no antigo Mato Grosso e atual Mato Grosso do Sul, em 1923, o terceiro personagem desse enredo que já se anuncia um tanto longo: Mário Calábria que, em 1945, se torna diplomata, tendo Guimarães Rosa como primeiro chefe no Itamaraty. Sobre este corumbaense se sabe menos, mas foi um personagem importante como interlocutor e ligação entre Guimarães Rosa e Curt Meyer-Clason, como bem mostram as cartas trocadas entre esses dois últimos. Mais tarde, Calábria, com base em anotações feitas ao longo de sua trajetória, publicará o livro Memórias. De Corumbá a Berlim (2003).

Bem, agora é a hora de reunir esses três personagens em torno de um eixo comum, certo? Mas os caminhos que os juntam são cheios de bifurcações, cada um deles com um livro a marcar a passagem aqui e acolá, quer dizer, Brasil e Alemanha.

Depois que voltou para a Alemanha em 1954, depois de 17 anos no Brasil, Curt Meyer-Clason se transformou em leitor especializado de Editoras por lá e frequentou os saraus promovidos pelo consulado brasileiro. Nesse ínterim, tomava emprestados muitos livros e lia bastante literatura brasileira. Em 1957, tendo conhecido o romance Grande sertão: veredas, que saíra no ano anterior, ficou encantado com essa obra e buscou o autor para propor uma tradução para o alemão. Em seu primeiro contato com Guimarães Rosa, entrega a ele uma tradução que fizera de algumas páginas do começo do livro. Aí começa uma intensa troca de cartas entre Rosa e Curt Meyer-Clason, que durará pelo menos nove anos. Nessas cartas, há não só trocas de impressões de como traduzir expressões e palavras, mas sobressai ali um grande respeito mútuo, uma amizade entre dois homens que compartilham sua inteligência sobre línguas e literatura para que aconteça a melhor versão do Grande sertão para o idioma alemão.

No entanto, Rosa estava longe e as cartas demoravam a chegar ou se extraviavam, o que dificultava bastante o bom andamento dos trabalhos. E é nesse momento que entra Mário Calábria, a essa altura Cônsul em Munique. Esse personagem, nas palavras de Guimarães Rosa em uma de suas cartas, estabelece uma “colaboração inestimável, valiosíssima”. Muitas vezes Curt Meyer-Clason e Mário Calábria conseguem resolver problemas semânticos, sintáticos ou ortográficos que empacavam a tradução, tirando, assim, o peso do trabalho que Guimarães Rosa teria. Em certo momento, a amizade e as trocas desse trio são tão fortes que Guimarães Rosa se dá conta da coincidência de que seus dois amigos envolvidos no trabalho de tradução de suas obras tinham ambos MC no nome, conforme GR afirma em carta datada de 14 de fevereiro de 1964.

O resultado desse trabalho intenso, mas também com momentos de tensão causada pela distância entre Curt e Rosa, amenizada pela proximidade de Mário Calábria, além de eventuais problemas com os editores, pode ser visto no belo livro que reuniu a correspondência entre esses dois personagens: João Guimarães Rosa: correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason, 2003). Embora não tenhamos aí nenhum texto de Mário Calábria, em vários momentos Rosa e Curt ressaltam a contribuição desse personagem, pois, a julgar pelas várias menções a ele nas cartas de ambos os missivistas, ele teve um papel essencial em desvelar para Meyer-Clason muitas referências do Grande sertão: veredas no processo de tradução.

Guimarães Rosa, como é de conhecimento amplo, faleceu em 18 de novembro de 1967, logo depois de tomar posse na Academia Brasileira de Letras (como ele temia, aliás). Por coincidência, Curt Meyer-Clason e Mário Calábria faleceram no mesmo ano, 2012. O resultado do belo trabalho dos três, no entanto, está à disposição dos leitores interessados nos livros citados aqui. A versão do Grande sertão: veredas em alemão fica reservada àqueles que dominam o idioma.

E, assim, nesse desenredo, marcado pela amizade, pela literatura e pelas intensas trocas culturais, esses três percursos se entrelaçam, para o prazer dos leitores do grande escritor Guimarães Rosa!


*José Alonso Tôrres Freire é professor da UFMS - Campus de Aquidauana.