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Autor de Diálogos do Ócio fala das infâncias de Manoel de Barros e do pioneirismo do poeta em busca da cultura bioceânica

Da Redação em 13 de Outubro de 2025

Divulgação

Jornalista e escritor Bosco Martins ({a esquerda), durante roda de conversa

O poeta Manoel de Barros, homenageado na Bienal Pantanal, já buscava a integração cultural por meio de uma rota que liga o Atlântico ao Pacífico, que 70 anos depois entrou na agenda de infraestrutura e logística do Brasil. 

O assunto foi abordado pelo jornalista e escritor Bosco Martins na Roda de Conversa realizada na Bienal do Pantanal que terminou no fim de semana, no Centro de Convenções Rubens Gil de Camilo, em Campo Grande. Em palestra, sobre o tema Territórios, Culturas e Geopolítica, com a participação do escritor James Jorge Barbosa Flores (Jaminho) e mediação do músico e escritor Rodrigo Teixeira, Bosco apresentou a edição impressa do seu livro Diálogos do Ócio, que traz um inventário de décadas de sua amizade com Manoel de Barros, publicada pela Editora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e revelou achado de anotações de versos inéditos do poeta. O escritor jardinense Jaminho  destacou algumas de suas principais obras, como a Onça Pitoca, sua mais recente publicação.

Entre o público da Roda de Conversa estavam autoridades, ativistas culturais, escritores, estudantes e leitores atentos e admiradores do poeta. Assistiram às palestras e debates o secretário estadual de Cultura, Marcelo Miranda, o ativista Carlos Porto, entre diversos  escritores que participaram da Bienal, como  Douglas Diegues, Lenilde Ramos, Sandra Menezes, Wilson Aquino, Samuel Medeiros, entre outros. 

Poeta das infâncias

A Bienal Pantanal encerrada  no domingo (12), elegeu Manoel de Barros como homenageado, referência da literatura contemporânea. A homenagem aconteceu com programação e momento que marcam coincidências importantes sobre a vida e morte do poeta, lembrou Bosco em sua palestra – 11 anos de sua morte aos 97 anos em 13 de novembro de 2014, os 108 anos de nascimento, a serem completados em 19 de dezembro, e o fechamento da 1ª Bienal do Livro de Mato Grosso do Sul em 12 de outubro, Dia da Criança. 

Marcos Leonardo / Editora Globo

Manoel de Barros em 2001, em Campo Grande, aos 97 anos

Manoel de Barros ficou conhecido como o poeta das infâncias; além da percepção dele sobre territorialidade e integração, quando na atualidade se concebe a ligação bioceânica como elo de fortalecimento das culturas além fronteiras.

Reportando-se à trilogia “Memórias inventadas” (2005, 2006 e 2007), Bosco Martins destacou que Manoel de Barros considerava todos os períodos da vida como infância, tempos que na verdade são apenas um. “A infância é o ponto de partida comum de toda a a obra de Manoel de Barros de modo que a escrita teria que ser sempre a escrita de uma infância”. Sobre esse lado, Bosco emocionou  o público presente na Roda de Conversa da Bienal ao narrar um episódio interessante.

“Quando fez 80 anos, Manoel de Barros recebeu pedido de um editor para que escrevesse três memórias: da infância, da vida adulta e, sobretudo, da velhice. Com sua avançada idade, o editor supunha que o  poeta teria muito a dizer sobre si. Passado algum tempo, o poeta enviou ao editor o primeiro livro: “Memórias da primeira infância”.  Em todos os sentidos, o livro foi um sucesso. Tempos depois, Manoel enviou novo livro ao editor: “Memórias da segunda infância”. Como diz Manoel, poesia é saber que  “não vem em tomos” . Assim, a segunda infância não era uma sequência da primeira, não era uma infância posterior. A segunda infância era uma segunda ida do poeta à infância sempre primeira. Manoel reservava ainda fôlego para uma nova ida à infância, e assim enviou ao editor um terceiro livro: “Memórias da terceira infância”. Um livro regenerador... 

O tempo passou, o poeta nada mais enviou ao editor, que tomou coragem e indagou: “Poeta, suas três memórias da infância são extraordinárias, porém onde estão as memórias da vida adulta e, principalmente, da velhice? Manoel respondeu : “Só tive infância”. E completou: “Nunca tive velhez. Só narro meus nascimentos”.

Sobre a realidade do mundo, que por meio das guerras torna a infância tão vulnerável, Bosco Martins também se emocionou, lembrando que o poeta entendia que a infância, enquanto antídoto à “velhez”, não se reporta a uma determinada idade. “Velhez” nada tem a ver com “velhice”. O  próprio Manoel era exemplo de que velhice nada tem a ver com velhez. A velhez é o antipossível que sufoca. A velhez  também é a estupidez das guerras arquitetadas  por velhacos, cujas primeiras vítimas são sempre as crianças de ambos os lados do front”, disse. 

Integração

A interação com outras culturas, europeia e sobretudo latino-americana era uma das particularidades por meio das quais o poeta ampliava seu horizonte e percepções. “Ao viajar para a Bolívia e o Peru, Manoel de Barros buscava absorver a sabedoria de tribos indígenas sobre a relação entre palavras e vida, especialmente a ideia de que as palavras possuem "vida, carne, aflição e cor", o que lhe permitiu aprimorar sua forma única de manipular e "criançar" a linguagem, criando neologismos e explorando o universo do "deslimite" da palavra. 

Nos idos dos anos 1950 comunicar-se com as culturas voltadas ao Pacífico já era uma ação integracionista. “Sim, o Peru faz parte de rotas bioceânicas, principalmente a rota ferroviária mais recente financiada pela China, que liga o Brasil ao porto de Chancay, no Peru. Já a Bolívia foi retirada do traçado original da ferrovia financiada pela China devido a divergências políticas, embora a Bolívia ainda seja considerada em rotas rodoviárias e no antigo eixo rodoviário conhecido como Estrada do Pacífico," apontou Bosco. 

Nem fazendeiro nem advogado

Manoel de Barros viveu para ser poeta, mesmo herdando fazenda e estudando ciências jurídicas, revelou-se sem nenhum dom para administrar propriedade no Pantanal e nem ser advogado, função, aliás, que exerceu uma única vez, como contou Bosco Martins.

“O poeta Manoel de Barros se formou em Direito. No entanto, seu primeiro cliente foi também o último. Tratava-se de um comerciante acusado de desonestidade no uso da balança. Na hora de pesar a mercadoria, sorrateiramente ele apoiava o dedo para aumentar o peso de forma fraudulenta, e assim lucrar com o logro. Uma senhora prejudicada pela desonestidade do mau comerciante resolveu abrir um processo contra ele. O processo seria o embate da palavra mentirosa do comerciante fraudador contra a palavra verdadeira da mulher corajosa  que o acusava, auxiliada pela má fama do denunciado testemunhando contra ele. Manoel de Barros vivia uma situação financeira difícil à época: havia nascido seu primeiro filho, muitas despesas envolvidas. Além disso, o terno e a gravata eram uma prisão para ele, assim como a gaiola para o passarinho que ama “voar fora da asa”. Na primeira vez em que esteve com o tal comerciante, Manoel pediu para conversar a sós com  ele, e indagou: 'É verdade o que dizem? Você faz trapaça para burlar o peso?' E o dissimulado respondeu: 'É verdade. Mas fique tranquilo, pagarei  bem, e sei que você precisa de dinheiro. É só inventar uma mentira bem contada que me favoreça'. Manoel pediu licença ao farsante e foi conversar com o dono do escritório de advocacia. Enquanto desfazia o nó da gravata, o poeta disse: 'Desisto do caso, não vou defender essa mentira. A invenção de que gosto é  outra'”. 

Bosco Martins fez o relato reforçando que uma coisa é a invenção que nega a realidade, como as fake news dos obscurantistas; outra bem diferente é a invenção poética que amplia o sentido da realidade, tanto a realidade externa quanto a interna. “A invenção negacionista apequena e aprisiona; a invenção  poética horizonta e liberta. Quando Manoel afirma que 'Poesia pode ser que seja fazer outro mundo', ele quis dizer que a poesia nasce da mesma fonte da qual brota a ética", concluiu o jornalista e escritor.

Com informações da assessoria de imprensa.