Campo Grande News em 14 de Julho de 2021
A militar carioca, que atua no Hospital Naval de Ladário, em Mato Grosso do Sul, faz parte da “tropa” que luta para ser trans nas Forças Armadas Brasileiras e foi representada na Justiça por quem realmente entende do assunto, a advogada Bianca Figueira, capitã-de-corveta reformada em 2008 por ter sido considerada “doente” pela Marinha, depois de assumir a identidade feminina.
“Naquela época, a transexualidade ainda era considerada doença mental. Fui reformada por doença. Embora não existisse nenhum tipo de estudo que dizia se tratar de ‘doença’ incapacitante, era isso que faziam. Reformavam por doença e também argumentavam que não existiam mulheres no cargo que a gente ocupava, o que não tem mais sentido. Mulheres estão em todos os cargos. Não há motivo nenhum para alegar isso, afinal profissão não tem gênero”, explica a defensora.
Foi só em 2019 que a OMS (Organização Mundial de Saúde) oficializou, durante a 72ª Assembleia Mundial da Saúde, em Genebra, a retirada da classificação da transexualidade como transtorno mental da 11ª versão da CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde). Bianca luta até hoje para reverter a sua situação na Marinha.
Arquivo pessoal
Bianca Figueira se tornou advogada depois de ter sido aposentada compulsoriamente como capitã-de-corveta da Marinha em 2008 por ser transexual
Apesar da derrocada, Bianca não se deu por vencida e hoje luta pela causa. “Minha história é muito longa. Mas, resumidamente, depois de reformada, fui cursar Direito, passei na Ordem e fiz mestrado justamente sobre a reforma dos militares trans nas Forças Armadas. No próximo semestre, vou lançar um livro sobre o tema”.
Batalhas na Justiça
A advogada conta que os tempos mudaram, pelo menos um pouco. A sargento que trabalha em Mato Grosso do Sul não é a única trans atuante nas Forças Armadas, mas é a primeira que teve de ir à Justiça e ganhou o direito de usar o próprio nome nas plaquetas dos uniformes. Nos quadros do Exército, a major Renata Gracin é militar trans, de Infantaria, lotada em hospital de São Paulo.
“Ingressar com a ação foi uma medida extrema. A verdade é que a major Renata pôde fazer toda a transição , porque nos dias de hoje, uma reforma compulsória pode caracterizar transfobia. Ninguém quis assinar a portaria de reforma. Mas, a Marinha poderia seguir o mesmo caminho, já que o Exército assumiu a major Renata”, opina a advogada.
Bianca Figueira defende que a interferência do Judiciário seria evitada se “um simples requerimento” não fosse negado. “A diretora do hospital deixou a Alice usar um banheiro exclusivo, mas o máximo que o diretor do Pessoal Militar da Marinha fez foi incluir o nome social no sistema eletrônico. Agora, imagina uma pessoa fazendo transição hormonal, com os seios crescendo, não poder usar o uniforme adequado? Vai ser motivo de chacota. Usar o nome de nascimento com um corpo de mulher? Não tem cabimento”.
A defensora conta que chegaram a propor que Alice se afastasse das funções para voltar ao trabalho depois de concluída a transição. “Mas ela não aceitou, porque ela não tem doença nenhuma”.
Apesar de considerar a “guerra” na Justiça desgastante, cada conquista, para a advogada, é um passo para que a comunidade LGBTQIA+ ganhe o respeito que merece. “A gente está caminhando, infelizmente a gente teve de propor uma ação complexa, densa, que envolve muitas emoções, aumenta a exposição. Tudo isso porque as Forças Armadas são retrógradas, obscurantistas, contra a democracia e as liberdades individuais. Poderiam dar exemplo, ser progressistas, mas não”.
A decisão
Alice Costa conseguiu, em primeira instância, autorização para usar o nome social, fardamento e cabelos femininos durante o trabalho. A decisão desta semana é do juiz federal Daniel Chiarettim, substituto na 1ª Vara Federal de Corumbá.
Antes de ingressar com a ação, a militar, que faz parte da instituição desde 2011, conseguiu fazer a mudança do nome civil. Com o novo documento, em março deste ano, fez requerimento aos seus superiores para que passasse a ser tratada por Alice.
Em 10 de junho, a corporação respondeu, não autorizando a mudança de nome e nem o uso de fardamento e cabelos femininos “por falta de previsão legal”. “Não é justificativa. O ministro Aires Brito, do STF, reconheceu, no voto histórico equiparou as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres, que ‘a ausência de lei não é ausência do direito, até porque o direito é maior do que a lei’. Então, o que não está juridicamente proibido, está juridicamente permitido”, rebate a advogada de Alice.
O juiz não viu razão para negar os pedidos da transexual. “Parece desarrazoado e ofensivo à humanidade da parte autora, que se identifica com o gênero feminino, a imposição em seguir os padrões masculinos de apresentação física da Marinha do Brasil e do sexo/nome atribuído no seu nascimento. Aliás, a identificação civil da parte autora já foi alterada para seu nome social, sendo injustificável a sua identificação militar não seguir o mesmo caminho”.
Daniel Chiarettim determinou que os requerimentos sejam atendidos sob pena de multa de R$ 100 por dia de descumprimento da medida. A Marinha ainda pode recorrer.
Alice prefere não dar entrevista sobre o tema, por enquanto, até porque, por ser militar da ativa, precisa de autorização superior para falar com a imprensa.
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