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Como destino do santo, imagem com mais de 70 anos venceu batalhas e é referencial de fé

Lívia Gaertner em 23 de Abril de 2018

Assim como a característica do santo que representa, a imagem de São Jorge que, hoje, está resguardada pelo devoto Joílson da Silva Cruz, é de muitas lutas vencidas. A primeira, segundo levantou o atual proprietário, foi de romper o longo trajeto entre os estados da Bahia e de Mato Grosso do Sul pela estrada de ferro na década de 1940.

A imponência de seu tamanho com dimensões que praticamente se igualam a de um homem adulto com pouco mais de 1,70 metro de altura, fez dela uma imagem única e que despertou grande devoção, mas também atraiu muitas batalhas para que se mantivesse inteira até a data de hoje, quando celebra-se mais um dia dedicado a São Jorge.

O cavaleiro que luta contra o dragão reinou como uma das peças mais singulares de uma casa de produtos religiosos que, por muitas décadas, funcionou na rua Delamare, uma das principais vias do comércio de Corumbá, porém, depois que o estabelecimento comercial encerrou suas atividades, ela ficou no ostracismo de uma residência, cujos proprietários que receberam a imagem como herança, foram, por várias vezes, aconselhados a não apenas se desfazerem, mas destruírem a peça rara, pelo fato de professarem fé diferente.

Fotos: Anderson Gallo/Diário Corumbaense

Imagem de São Jorge encanta devotos por sua imponência e carrega carga histórica e de fé

Até que chegasse às mãos de Joílson, algo que levou em torno de 8 anos, a imagem vivia sob a ameaça da destruição, o que levaria um grande legado histórico e de  fé do povo de Corumbá embora. Afeito não apenas à devoção no santo representado pela imagem construída entre armações de ferro e gesso, Joílson, que milita na área cultural há décadas e, atualmente,  é o gestor da Fundação da Cultura e do Patrimônio Histórico de Corumbá, contou ao Diário Corumbaense que a aquisição foi um grande trabalho de paciência e conscientização sobre o que ela representava para a cidade e para os devotos.

“É uma imagem única no Estado porque não se fabrica mais desse modo, datada de 1945, veio da Bahia de trem, então daí tenha uma ideia do valor histórico e espiritual disso. Sou um soldado de São Jorge que lutei nessa linha de frente para resgatar essa imagem tão significativa para os devotos, para a história da cidade e para o povo que tem fé nele em cada religião”, afirma.

“Minha relação com São Jorge é muito forte e a conquista dessa imagem foi um grande marco para mim esse ano. Minha ligação com São Jorge é pelos momentos que passei na vida, principalmente os de saúde, com minha família e comigo. Sou católico e fui educado a sempre conhecer as histórias dos santos e a de São Jorge Guerreiro sempre me comoveu muito. Foi uma identificação, um carinho de imediato e sempre recebi as graças de Deus por interseção de São Jorge”, explicou sobre sua devoção.

De posse da imagem que precisa de oito homens para ser transportada, Joílson passou à outra etapa para deixá-la com o aspecto como se tivesse saído da fábrica há 73 anos. Entrou em cena o artista plástico e artesão corumbaense Denílson Oliveira (Deni Art) que devolveu formas e cores em sua plenitude.

Como nova, surgiu outro desafio: o de entrar na casa do novo proprietário que literalmente rompeu barreira. “Tive que derrubar a parede porque ela não passava na porta, mas para São Jorge a gente faz tudo. Hoje, ela não sai mais da minha casa até porque teria que derrubar de novo para isso. Ela só sai, se conseguirmos ter uma igreja para ele aqui, daí eu penso nessa possibilidade”, afirma Joílson que já se recusou a vender a imagem por valor cinco vezes maior do que a adquiriu ao reafirmar que não se trata de dinheiro, mas de fé.

“Muitos amigos vêm aqui e se arrepiam só de chegar perto, se ajoelham. Ela não sai, mas a casa está aberta para os verdadeiros devotos conhecê-la”, justifica.

Joílson Silva da Cruz negociou por cerca de 8 anos para adquirir a imagem que hoje está na sala de sua casa

Sincretismo tornou São Jorge um dos santos mais reverenciados dentro de Corumbá

A devoção de Joílson é compartilhada por um incontável número de pessoas em Corumbá e não apenas junto à Igreja Católica, mas também nas casas de umbanda e candomblé, religiões de matrizes africanas, cuja herança é forte na cidade que possui catalogado cerca de 400 espaços religiosos dessa natureza, segundo levantamento da Seccional Corumbá, da Federação de Cultos Afro-Brasileiros e Ameríndios do Estado de Mato Grosso do Sul.

Para umbandistas e candomblecistas, São Jorge é sincretizado na figura de Ogum, orixá da guerra, ligado também à forja do ferro e metais. Pessoas regidas por esse orixá são destemidas e batalhadoras. “Ogum na nossa umbanda reverenciado em sua data magna, que é 23 de abril, ele foi sincretizado pelos escravos africanos com a imagem do santo católico, e São Jorge foi agraciado como o 'Cavaleiro do Espaço', que é Ogum, aquele homem da batalha, da guerra, que enfrenta, que coloca a cara à tapa”, explicou o babalorixá Hamilton de Xangô, da tenda espírita São José, localizada no bairro Universitário.

“Dentro da Umbanda e do Candomblé, ele é o patrono, ele é o general, é a figura máxima que combate as maledicências, é o emissor que nos guarda e nos defende durante todo o ano, não apenas na data magna de 23 de abril. O ano todo ele trabalha dentro dos terreiros no trabalho da descarga do ambiente espiritual para que se tenha um bom desempenho na conduta dos espíritos perante às pessoas que vem fazer suas consultas, tomar seus passes, se libertar do olho grande, enfim, é como se fizesse uma limpeza para uma nova carga de energias, então Ogum é o homem que abre as portas, dá caminho aos filho. A gente costuma sempre  dizer que fazemos fazer as oferendas em estradas, principalmente, as de ferro, porque o ferro é seu elemento”, detalhou o líder espiritual a este Diário.

Babalorixá Hamilton de Xangô diz que São Jorge é um dos santos mais influentes dentro das religiões de matrizes africanas

O babalorixá, em seus 35 anos de ofício espiritual, avalia que, apesar de forte em Corumbá, a crença em São Jorge sofre com os resquícios de preconceito, os mesmos ainda sentidos pelas religiões de matrizes africanas, uma vez que as mesmas acolheram em seus rituais o santo católico como importante figura.

“Em nossa cidade já deveria ter um local próprio para ele, para se louvar, fazer uma missa e convidar não somente os umbandistas e candomblecistas, mas toda a comunidade católica, entrelaçando os santos e seus sincretismos”, sugeriu.

O certo é que na sua representação católica ou nas adotadas pela Umbanda e Candomblé, São Jorge é um dos santos mais populares na cidade. Outro exemplo é o ligado à maior festa popular de Corumbá: o carnaval. A segunda escola de samba mais antiga em atuação no município, A Pesada, vice-campeã do Carnaval 2018, tem como um dos símbolos, a imagem de São Jorge.

Bandeira da escola de samba A Pesada trouxe por anos a figura do santo guerreiro em destaque

Muitos estabelecimentos comerciais em distintas partes da cidade e de diversos ramos como drogarias e lanchonetes entregam seus nomes para o santo guerreiro que, como lembra o babalorixá Hamilton, é considerado o padroeiro dos comerciantes em diversos países europeus. “Corumbá tem uma massa muito grande de devotos, ela balança muito mesmo. Corumbá se estremece muito com essa devoção”, avalia.

História

De acordo com o site Canção Nova, referência da religião católica, São Jorge é conhecido como ‘o grande mártir’. Martirizado no ano 303, pertenceu a um grupo de militares do imperador romano Diocleciano, que perseguia os cristãos. Jorge então renunciou a tudo para viver apenas sob o comando de nosso Senhor, e viver o Santo Evangelho.

São Jorge não queria estar a serviço de um império perseguidor e opressor dos cristãos, que era contra o amor e a verdade. Foi perseguido, preso e ameaçado. Tudo isso com o objetivo de fazê-lo renunciar ao seu amor por Jesus Cristo. São Jorge, por fim, renunciou à própria vida e acabou sendo martirizado.

Uma história nos ajuda a compreender a sua imagem, onde normalmente o vemos sobre um cavalo branco, com uma lança, vencendo um dragão:

Num lugar existia um dragão que oprimia um povo. Ora eram dados animais a esse dragão, e ora jovens. E a filha do rei foi sorteada. Nessa hora apareceu Jorge, cristão, que se compadeceu e foi enfrentar aquele dragão. Fez o sinal da cruz e ao combater o dragão, venceu-o com uma lança. Recebeu muitos bens como recompensa, o qual distribuiu aos pobres”.